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11 de dezembro de 2020

O Covide ia a caminho da Tugulândia …




Permitam-me o desabafo …

Permitam-me o desabafo. Hoje vai sair testamento.

Não deve haver frustração maior que não conseguir fazer algo, não tanto por se estar esgotado, mas sobretudo por se depender de outros, colegas, que estão tanto ou mais esgotados que nós.

Não imaginam o que tenho ouvido e lido de alguns pais, e pior do que isso, de responsáveis de estabelecimentos de ensino.

Nunca tive ilusões.

No mundo real, feito de dificuldades, e não de relatórios muito bonitos para inglês ver, e político mostrar para cima para segurar o seu lugar, onde os utentes precisam de coisas tão prosaicas como o teste para o seu filho realizar, ou a declaração de isolamento profilático do filho, que justifica tanto a falta deste, como a do progenitor, é muito fácil passar de bestial a besta.

Toda a gente tem o direito à indignação. De pedir justificações. Mas isso não lhe dá o direito à falta de educação, à ignorância, ou até mesmo à estupidez pura e simples.

Nós, delegados de saúde, nem precisávamos de nos justificar. Primeiro, porque estamos de bem com a nossa consciência, e segundo, porque por muitas explicações que dêmos, há pessoas que não querem ouvir. Como a colega enfermeira que, indignada, não quis estar à espera na fila como todos os outros utentes, e me disse que era uma vergonha o tempo de espera. Ela, que devia saber, melhor que os outros, o que têm sido estes tempos difíceis, sem recursos humanos suficientes para tanto trabalho. Escusado será dizer que virei costas à colega enfermeira, porque ainda tolero ignorância e arrogância a quem não é profissional de saúde, mas não a quem o é. Fi-lo, em consciência, sem ter chegado a explicar-lhe que eu nem era culpado da situação que tanto a indignava, nem eu, nem os meus colegas, e que muito provavelmente, por aquilo que me tinha acabado de descrever, pelo menos parcialmente, nem era da nossa responsabilidade, nem da nossa jurisdição.

Há duas ou três coisas que vos quero aqui dizer para poderem perceber o estado a que isto chegou.

Para que compreendam a razão por que, hoje, me sinto frustrado.

Existe uma linha telefónica, a SNS 24, que de março até hoje, só tem feito asneiras atrás de asneiras. Para que fique claro, quem está comodamente atrás do telefone, não são profissionais da área da saúde pública. Muito menos são delegados de saúde. Muitos deles foram literalmente atirados aos lobos, e seguem cegamente um algoritmo muito bonito que não abarca a enorme variedade de situações específicas com que uma autoridade de saúde se confronta diariamente, sem normas e orientações claras da DGS, obrigando a raciocinar, adaptar, e decidir com rapidez, bom senso, e sobretudo prudência. É por isso que existem Autoridades de Saúde. De cada vez que fazem um erro, ou tomam uma decisão, têm que a justificar, mas alguém que está atrás de um telefone, nunca responderá pelos seus erros, porque a SPMS nunca disponibilizou as gravações dos telefonemas quando tal lhe foi solicitado. Talvez porque soubessem que não ia correr bem. É por essas e por outras que aquilo que a SNS 24 diz e faz não se escreve, e que aquilo que a Autoridade de Saúde decide se sobrepõe sempre a qualquer determinação da SNS 24. Porque a SNS 24 não é Autoridade de Saúde, e porque a Autoridade de Saúde dá sempre a cara e responde pelos seus actos, ao contrário da SNS 24.

Outro problema tem sido, desde há meses, o facto de inúmeros profissionais de lares, assim como alunos, serem oriundos de outros países, sobretudo do Brasil e dos PALOP. Sem número de utente, número de segurança social, NIF e ou morada, muitas vezes torna-se difícil, se não impossível, prescrever testes COVID. Mais grave do que isso, é a perspectiva assustadora de profissionais essenciais em funções importantes, muitos deles com condições socio-económicas complicadas, baixa literacia, e sem estarem devidamente inscritos no SNS. Sim, porque da mesma maneira que não conseguimos emitir testes, não será possível prescrever medicamentos ou outros exames complementares de diagnóstico. Assustador.

Pior do que isso é perceber que a Saúde Escolar é uma anedota. Se a Lei consagra, e bem, o direito dos filhos dos migrantes a uma educação condigna, permitindo a sua matrícula, então deveria estar acautelado que estes alunos tivessem os seus números todos atribuídos, caso contrário, não conseguimos emitir os tão necessários testes. Apesar de já termos reiteradamente explicado esta situação aos agrupamentos de escolas, por vezes ainda há pais a exigir os testes que não conseguimos emitir, ou pior do que isso, as próprias escolas a pedir os testes que sabem muito bem que não conseguimos prescrever. Mais uma vez, um aluno que não está devidamente inscrito no SNS, não poderá fazer o seu teste COVID, e não poderá ser devidamente acompanhado e vigiado do ponto de vista da sua saúde. Se amanhã tiver um traumatismo em contexto escolar, eu quero ver como é que vai ser... Definitivamente, há gente em vários níveis hierárquicos de decisão, que anda a brincar com o fogo, ou a fazer de conta que não se passa nada, sendo mais fácil colocar a culpa na saúde, e nomeadamente nos delegados de saúde. Não imaginam o tempo perdido, pelas administrativas e nós médicos prescritores, a tentar resolver a necessidade de emissão de testes a alunos migrantes. A resolução do problema está a montante, convençam-se disso. Colocar o ónus da sua resolução exclusivamente na saúde, quando parte do problema decorre de questões cuja tutela é da educação, é tirar a água do capote, é não ir ao cerne da questão.

E a terminar, last but not the least, o assunto que está na moda, que é dar pancada no delegado de saúde, por não emitir os testes nem as declarações de isolamento profilático, no devido tempo. Esse incompetente, irresponsável, insensível do Delegado de Saúde...

Para que percebam, em cada unidade de saúde pública existem vários profissionais, assistentes técnicos e operacionais, técnicos de saúde ambiental, enfermeiros, e médicos de saúde pública. Um médico de Saúde Publica pode, ou não, exercer também as funções de Autoridade de Saúde. Se as exerce, é Delegado de Saúde, a nível local. Cada um deles exerce as funções de Autoridade de Saúde de forma totalmente independente e autónoma. De entre os vários Delegados de Saúde da unidade de saúde pública, há um que coordena a unidade, o Delegado de Saúde Coordenador. Mas para que fique claro na cabeça de muita gente, a decisão de cada delegado de saúde não tem de ser aprovada pelo delegado de saúde coordenador. Cada um tem autonomia na sua decisão, e uma eventual diferença de parecer passa pela troca de impressões e discussão técnica. É por isso que é ridículo quando alguns dizem que a opinião do chefe, só por si, conta mais. Pesa, é certo, ou não tivesse a experiência que justifica que seja chefe, mas nunca pode desautorizar a decisão tecnicamente correcta de um colega cujo exercício de funções é autónomo, de forma a assegurar, a qualquer momento, o cumprimento da Lei, na defesa da Saúde Pública.

Cada unidade de saude publica tem vários profissionais, cujo número nunca é suficiente para as necessidades. Numa unidade como a de Loures-Odivelas, já era assim antes da pandemia. Imaginem agora, em período pandémico. Mesmo os muitos profissionais de várias outras unidades funcionais, que foram uma grande e preciosa ajuda, nunca foram e nunca poderiam ser suficientes para dar resposta a tantas solicitações, nomeadamente milhares de inquéritos epidemiológicos, dos quais, muitos deles, dão origem a dezenas de outros inquéritos a familiares, amigos, e colegas.

Numa unidade de saúde pública, os Delegados de Saúde são sempre poucos para as necessidades. Médicos não se inventam facilmente, e há actos que apenas podem ser realizados por estes, como prescrever testes. Para além disso, há documentos que apenas podem ser emitidos pelos Delegados de Saúde. Mas isto não quer dizer que todo o processo passe exclusivamente pelo Delegado de Saúde, e que apenas dependa deste. Para que ele possa prescrever um teste, é preciso que as assistentes técnicas e operacionais inscrevam os utentes, ou seja, que façam previamente o RAC (registo administrativo de controlo), sem o qual o médico não pode fazer nada. Do mesmo modo, a emissão da declaração de isolamento profilatico (DIP) implica todo um processo árduo de registo e validação prévios, antes de se redigir e emitir o documento que há-de ser carimbado e assinado pelo delegado de saúde.

Dito isto, há várias turmas, de varias escolas, em relação às quais já foi dada indicação para fazer os RAC e passar as DIP, mas que as assistentes técnicas e operacionais, poucas e esgotadas, como nós médicos e enfermeiros, ainda não conseguiram fazer.

Portanto, se o período de isolamento profilatico dos vossos filhos já acabou ou está a acabar, e a SMS com a prescrição do teste ainda não vos chegou ao vosso telemóvel, e a se a DIP ainda não foi emitida, provavelmente a culpa não será do Delegado de Saúde.

Mais grave: perante uma situação destas, em que o Delegado de Saúde tem as mãos atadas, por falta de meios aos quais ele é totalmente alheio, e aos quais as direcções e a tutela fecharam os olhos ou não deram solução antecipadamente, estão a ocorrer situações de difícil gestão em várias escolas, cujas direcções e pais de alunos querem ver resolvida. Mas isso não dá às escolas a legitimidade para agir à revelia das autoridades de saúde, em matéria que não é da sua competência. E se há situações em que a ignorância dos parceiros é tolerável e compreensível, outras há em que já não o é, quando os directores das escolas foram entretanto devidamente informados e confrontados com a gravidade e perigo das suas acções. Para alguns deles, se for necessário, não deixará de ser feito o que urge ser feito. Porque eu não acho que sou o maior. Apenas sou o Delegado de Saúde, e tenho de me preocupar com a saúde dos vossos filhos, mas também com a saúde dos filhos dos outros. Saúde Pública é isso tudo: sacrifício e serviço público, em prol da comunidade.

Que façam de mim saco de boxe.

Por muito que a minha vontade fosse deitar a toalha ao chão, cá estarei para cumprir as minhas funções.

Porque, apesar de todas as dificuldades, nesta pandemia recebemos palavras de alento e de apoio de muitos de vós, e talvez até tenhamos feito amizades para a vida.

Faço o que faço por todos, mesmo os que talvez não merecessem, mas confesso que é a pensar em vocês (e vocês sabem quem são) que continuo a tentar fazer mais e melhor.

E apesar de tanta dificuldade, de tanto obstáculo e incompreensão,

Este vírus não é mais forte do que nós.

Referência
https://m.facebook.com/groups/EsteVirusNaoEMaisForteDoQueNos/permalink/443293350012091/

Recebido
Whats App [17:48, 10/12/2020]



O Covide ia a caminho da Tugulândia …

O Covide ia a caminho da Tugulândia quando encontrou um alentejano dormindo debaixo de um chaparro.

Como o Covide fazia imenso barulho o alentejano acordou e perguntou-lhe:

Aonde vais que tanto barulho fazes?

O Covide respondeu-lhe:

Vou à Tugolândia, matar zero vírgula seis por cento dos tugas.

Mortos os tugas, o Covide voltou para sua casa e, indo no seu caminho, reencontrou o mesmo alentejano debaixo do mesmo chaparro, só que bem acordado.

Muito zangado o alentejano  interpelou o Covide:
Mentiste-me! Disseste-me que matarias zero vírgula seis por cento e mataste mais, muitos mais. Há meses que não consigo descansar!!!

O Covide respondeu-lhe:

Não menti não. Só matei zero vírgula seis por cento. Os restantes mataram-nos lá os chefes deles.

— Adaptação de um conto da tradição sufi.






Etiqueta principal: Política à Portuguesa.

3 comentários:

  1. O texto inicial merece sem dúvida destaque. Está muitíssimo bem escrito e realça a fealdade da situação que tomou conta de nós. Pior à situação do que o bicho propriamente dito, digo eu.
    Quanto ao conto sufi adaptado... Queres mesmo que a malta pense pela sua cabeça. Lamento informar - te que está fora de moda.

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    1. «Queres mesmo que a malta pense pela sua cabeça. Lamento informar - te que está fora de moda.»

      Não custa nada tentar!

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  2. Partilhado no Twitter.
    https://twitter.com/athayde_a/status/1337522508526968833

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