A propósito da disciplina de Educação Para a Cidadania, ou Cidadania e Desenvolvimento, as fontes variam, e de dois alunos que, chumbados por faltas à dita disciplina, passaram, primeiro, e chumbaram, depois (por terem sido "despassados"), vai por aí uma grande polémica metendo comunicado públicos, abaixo assinados, artigos nos jornais, entrevistas nas televisões, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Constituição da República Portuguesa, leis várias, a Liberdade de Educação dos pais, ou das famílias, o Direito à Objecção de Consciência dos ditos pais, ou famílias (caso não concordem com os conteúdos das disciplinas, em geral, desta em particular), polémica, e assunto, sobre os quais pretendo também dizer umas coisinhas.
Entretanto, e dado que Isabel Stilwell já publicou no Jornal de Negócios um artigo sobre este tema, artigo que muito me agradou e com o qual concordo a quase 100%, vou começar por transcrever o dito artigo.
Eu também nunca teria ido à escola
Felizmente, os meus pais acreditavam em si próprios. No seu exemplo, e nos nossos neurónios. Acreditavam na força dos argumentos com que defendiam os seus valores, na fundamentação das suas convicções, e na nossa capacidade para aprender a esgrimir as nossas, mesmo em ambientes hostis.
Por Isabel Stilwell no Jornal de Negócios a 01 de Setembro de 2020 às 19:39
A notícia anda pelos jornais, pelas redes sociais com cartas abertas e petições, mas o essencial conta-se em poucas linhas: um pai impediu os dois filhos de 12 e 15 anos de frequentarem as aulas de Cidadania e Desenvolvimento, disciplina obrigatória. Faltas que a lei considera obrigarem o aluno a chumbar o ano. Neste caso dois, por uma série de peripécias, entre as quais o facto de a família ter recusado as tentativas da escola/agrupamento/ CPCJ/Ministério da Educação para encontrar uma solução. Foi-lhe proposto que substituíssem a frequência das aulas por trabalhos de projeto escolhendo, por exemplo, o tema da literacia financeira ou a declaração dos Direitos do Homem, mas o pai recusou, porque defende que o que está em causa é a disciplina em si, e o direito dos pais à “objeção de consciência”. Numa entrevista à revista Sábado afirma: “Não tem nada a ver com ideologia de género ou sexo. A mesma questão coloca-se em relação à solidariedade ou ao ambiente. São competências que entendemos que são competências dos pais, independentemente de estarmos a falar de ideologia de género, ambiente ou literacia financeira.”
O Ministério da Educação não teve outro remédio senão ser intransigente: sendo assim os alunos têm de chumbar, disse num despacho que uma providência cautelar entreposta pela família suspendeu. A guerra nos tribunais começou, e promete ser longa. Enquanto isto, toda a gente tem uma opinião. E eu não sou exceção.
Se o meu pai tivesse sido como este senhor, nunca me teria mandado à escola, ou pelo menos frequentar a disciplina de História, porque como historiador e inglês que era, discordava violentamente da forma como na escola portuguesa nos era ensinado o episódio do Ultimato. E tinha, sem dúvida nenhuma, recusado que eu continuasse no liceu nos anos quentes do pós-25 de Abril em que a ideologia entrava por todas as disciplinas, independentemente do nome. Católico convicto, não nos teria deixado pôr um pé numa sala de aula onde se dissesse que a “religião era o ópio do povo”. E se o meu pai fosse de uma etnia ou crença religiosa que defendesse que a escola não era para meninas, lá ficava eu em casa, porque a competência da minha mãe para os bordados era insuperável. Se alinhasse pelos criacionistas nunca teria estudado nem Ciências, nem Biologia, e caso fosse primo da Dona Branca, teria insistido em ser ele a “dar-me” literacia financeira.
Mas, felizmente, os meus pais acreditavam em si próprios. No seu exemplo, e nos nossos neurónios. Acreditavam na força dos argumentos com que defendiam os seus valores, na fundamentação das suas convicções, e na nossa capacidade para aprender a esgrimir as nossas, mesmo em ambientes hostis. Acreditavam, até, na nossa liberdade de escolher uma opinião diferente da sua. E tudo isto fora do horário escolar.
Porque sim, o que mais me confunde no histerismo de alguns pais — e nos movimentos e políticos que fazem destes casos bandeira — é a ideia que têm dos seus próprios filhos e dos adolescentes em geral, imaginando que precisam de ser defendidos ao limite (inclusivamente faltando às aulas) das “ideias perigosas”. Ideias que, num sopro, imaginam poder deitar por terra tudo aquilo que lhes ensinaram e que veem em casa, sejam sobre “sexo” ou sobre o “escândalo” de se entoar um cântico de missa na aula de música. Confunde-me que não desejem que os seus filhos, com o seu apoio, evidentemente, se treinem na escola a saber defender os seus pontos de vista. Sinceramente revelam muito pouca confiança nas suas “competências” para educar.
Porque se é verdade que o Estado não pode programar a educação de acordo com certa ideologia, filosofia ou estética, de modo a criar um pensamento único — e contra isso todos os protestos são bem-vindos — isso não significa que as ideologias, a filosofia ou a estética sejam postas fora dos conteúdos escolares. O que importa é que o sejam de uma forma aberta e plural de modo a fomentar o pensamento crítico. E o pensamento crítico só se forma se for exposto ao contraditório.
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Tentações de Cristo
Por Botticelli, 1481-82, na Capela Sistina, no Vaticano. |
Cidadania, Sectarismo e Bom Senso
católico do grego καθολικος (universal)
diabo do grego διάβολος (aquele que separa)
Mateus 4, 8-10
Em seguida, o diabo conduziu-o a um monte muito alto e,
mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória, disse-lhe:
«Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares.»
Respondeu-lhe Jesus:
«Vai-te, Satanás, pois está escrito:
“Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto.”»
um
Subscrevo a quase 100% o artigo de Isabel Stilwell. E só não o subscrevo a 100% porque não subscrevo a “dentadinha” no deputado Nuno Melo.
dois
Que a disciplina de Educação Para a Cidadania, ou Cidadania e Desenvolvimento, as fontes variam, é de índole político-ideológica é, mas a disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação, obrigatória entre 1936 e 1974, também o era, e não me consta que pais republicanos, socialistas, comunistas, tivessem invocado fosse o que fosse para evitar que os seus filhos a frequentassem.
três
O que mais me impressiona na polémica é o sectarismo e falta de bom senso que a mesma revela. A ideia é tribalizar Portugal? Recuar aos saudosos tempos da República Afonsista, da Guerra dos Dois Irmãos, das Invasões Francesas?
Fontes e referências
- “Cidadania e Educação: Seus reflexos na formação.”. Instituto Vida Cidadã. Sem data de publicação. Recuperado a 05 de Setembro de 2020 às 20:07 UTC+1.
- “Eu também nunca teria ido à escola”. Isabel Stilwell. Jornal de Negócios. Publicado a 01 de Setembro de 2020 às 19:39.
- “Tentação de Cristo”. Wikipédia. Esta página foi editada pela última vez às 21h36min de 9 de abril de 2020.
- “católico”. Wikcionário. Esta página foi editada pela última vez às 02h25min de 30 de abril de 2017.
- “diabo”. Wikcionário. Esta página foi editada pela última vez às 08h09min de 30 de abril de 2020.
- “Bíblia Sagrada”. Difusora Bíblica. Publicada a 13 de Maio de 2001.
- “Cidadania”. Wikipédia. Esta página foi editada pela última vez às 13h12min de 24 de junho de 2020.
- “Educação para a Cidadania”. Direção-Geral da Educação (DGE). Sem data de publicação. Recuperado a 06 de Setembro de 2020 às 08:27 UTC+1.
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